Nota pública é imoral, porque decisão judicial condenando
jornalista no Rio Grande do Sul viola a liberdade de imprensa e informação e decisões
vinculantes da Suprema Corte do país.
Rodrigo dos Reis, Geógrafo, Jornalista e acadêmico em Direito.
A sociedade brasileira ficou estarrecida com a decisão
proferida pela juíza Karen Rick Bertoncello, condenando a jornalista Rosane de
Oliveira e o jornal Zero Hora ao pagamento de 600 mil a título indenizatório,
montante a ser corrigido com juros de mora de 1% ao mês desde a data de
publicação da reportagem.
O jornal divulgou um ranking contendo o salário dos juízes
do Estado, em que a desembargadora Iris Medeiros Nogueira figurava no topo, resultado
do somatório do subsídio mensal e de valores decorrentes de indenização de
licença-prêmio.
Suposta repercussão negativa sobre a honestidade da
magistrada desencadeou a ação judicial, mas o processo é apenas a ponta do
iceberg de uma “nobreza togada”, conceito de Frederico Normanha Ribeiro de
Almeida, que, aparentemente, vive de costas para a realidade social de um país
marcado pela miséria, fome e desemprego.
Não se trata apenas de uma sentença proferida por uma juíza
de primeiro grau, passível de recurso, mas sim de decisão judicial que
viola a Constituição e afronta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
especialmente, a tese fixada no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade
n. 6792 e n. 7055, com efeito vinculante, em que ficou consignado que meros
juízos de valor, opiniões ou críticas feitas por jornalistas, no exercício da
função, não podem ser motivos à responsabilização civil.
Verdade é que a sentença da magistrada refoge à
razoabilidade e à proporcionalidade, escancara o corporativismo predatório de
alguns juízes que se comportam mais como “CEOs” da administração pública, com
narrativas que não se sustentam na correta subsunção à lei, mas no objetivo
único de intimidar a imprensa e jornalistas.
A Constituição e as Leis do país são claras ao darem enorme
importância à liberdade de expressão, consagrando seu vínculo com a garantia de
acesso à informação, que é atributo fundamental da liberdade de imprensa e
indispensável para oxigenar a democracia.
Há, ainda, normas internacionais ratificadas pelo Brasil,
com destaque para o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos
(PIDCP) e o Pacto de San José da Costa Rica, conhecido também como Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, considerado o mais robusto tratado
internacional sobre liberdade de expressão no mundo, com status de sobredireito
no país.
E por qual motivo a
justiça gaúcha ignorou a legislação e precedentes vigentes no ordenamento
jurídico brasileiro?
A Lei Orgânica da Magistratura classifica os Tribunais e os
Magistrados como órgãos do Poder Judiciário. Os juízes têm a função de aplicar
a lei na circunscrição jurisdicionada. Já aos Tribunais cabe a tarefa privativa
de eleger presidente e diretores, organizar serviços auxiliares, fixar
vencimentos, conceder indenizações, licença e férias, etc.
Em uma instituição rigidamente hierárquica, uma juíza de
primeiro grau, por mais autonomia que possua no exercício da jurisdição, pode julgar
uma causa particular envolvendo a ex-presidente do Tribunal de Justiça?
A limitação dos chamados “supersalários” da magistratura tem
sido um tema recorrente na imprensa e no mundo político, tanto é assim que o
CNJ limitou o pagamento de penduricalhos, classificados como verbas
indenizatórias concedidas a membros do Judiciário por meio de decisões administrativas
dos tribunais.
O tema está tomando conta do país, isso porque subsídios de
juízes, turbinados com indenizações, contrastam com a desigualdade social, a
fome, o desemprego e a miséria que acometem milhões de brasileiros. Recentemente,
inclusive, um ministro do STF chamou de “criatividade administrativa” os
aumentos das remunerações dos juízes e classificou como um verdadeiro
“constrangimento” para o poder judiciário.
Contudo, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(AJURIS) emitiu uma nota pública na qual manifesta sua grande preocupação com o
aumento de ataques à independência judicial dos juízes e juízas gaúchos e
brasileiros e com críticas que, supostamente, ultrapassam o direito de
manifestação, atingindo decisões judiciais de forma desrespeitosa.
Críticas de jornalistas, cidadãos, políticos, intelectuais,
operadores do direito, ministros da Suprema Corte e professores de renomadas universidades
do país, como USP e FGV, a respeito de
supersalários de agentes públicos, representam um ataque à independência do
Poder Judiciário?
O “chilique” da Ajuris só comprova que as carreiras jurídicas são avessas a mudanças e críticas, sobretudo quando se trata de remuneração.
Reformas no Judiciário são mais do que necessárias, pois o órgão sofre com a
falta de uma lei atualizada que estabeleça em todo o país diretrizes modernas
para sua governança e gestão, sintonizadas com o século 21.
Segundo a produção acadêmica do cientista político Rafael
Rodrigues Viegas, a Lei Orgânica da Magistratura é antiga e
inadequada (1979), enquanto integrantes da instituição estão discutindo
e utilizando inteligência artificial, as disposições legais que discorrem sobre
a estruturação do Poder Judiciário permanecem desatualizadas, ainda que o tema
mereça especial atenção da classe política do país.
Por isso que a Ajuris, por mais legítima que seja sua
autuação na defesa dos interesses corporativos de uma elite organizacional, deveria
se preocupar em melhorar a prestação da justiça no Estado e em melhorar as
condições de trabalho de magistrados.
Aliás, eventuais mudanças poderiam considerar a adoção de
critérios legais que valorizem a certificação e a especialização dos juízes e
desembargadores, critérios estes que precisam ser considerados no processo de
vitaliciamento e de movimentação da carreira, no intuito de que “membros”
qualificados e comprometidos permaneçam na carreira e ocupem postos
estratégicos, gerando expectativa não apenas de elevar a qualidade das decisões
judiciais, mas também reduzir a rotatividade e o preenchimento de posições por
eventual influência política ou conveniência pessoal, tornando o Poder
Judiciário mais republicano, eficiente, transparente e conectado à realidade
social do país.
Hoje, a avaliação de desempenho na carreira é predominantemente
quantitativa, seguindo diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, que prioriza
o número de manifestações em geral em detrimento da qualidade e do impacto
social das decisões judiciais, gerando um ambiente em que juízes e servidores
são pressionados a produzir estatísticas positivas, em vez de análises
aprofundadas e justas dos casos.
Como resultado desse modelo, a preocupação com metas
numéricas leva a problemas de saúde física e mental, resultando no adoecimento
de membros e servidores, em injustiças e em decisões automatizadas, que seguem
modelos e padrões salvos em documentos de computador, que não necessariamente
se amoldam melhor ao caso concreto. Gera-se o risco de ignorar a complexidade
dos casos concretos, a coerência jurídica das manifestações, reforçando um
modelo que privilegia a produtividade em detrimento da qualidade.
Nas carreiras do Judiciário, a avaliação deveria incluir
critérios na lei mais qualitativos, considerando, por exemplo, a qualidade da
fundamentação das manifestações, a defesa de direitos fundamentais e o impacto
na pacificação dos conflitos sociais. Também seria importante incluir a
percepção do cidadão, de advogados e outras autoridades e órgãos públicos,
garantindo que o exercício da magistratura não esteja atendendo somente a
números e a interesses outros, mas efetivamente cumprindo sua função determinada
pela Constituição Federal.
Reformas no CNJ, em Corregedorias, a inclusão de mecanismos
como feedback institucional, ouvidorias externas e participação da sociedade
civil poderiam tornar a avaliação mais justa e alinhada aos interesses da
população. Dessa forma, pode ser possível criar incentivos para que juízes e desembargadores
se preocupem menos com a quantidade de manifestações, penduricalhos,
privilégios e mais com a qualidade e a efetividade de suas ações.
De acordo com especialista, o Judiciário brasileiro sofre, ainda,
com outro problema, que agrava todos os demais, e que não depende apenas de
mudança na legislação, que é a persistência de um perfil elitizado na carreira,
com pouca ou nenhuma formação em gestão pública e políticas públicas, que
afasta a Instituição da realidade de estados e, principalmente, de municípios,
estes muito desiguais entre si.
O processo de seleção à carreira só reforça esse perfil
elitizado, em uma espécie de reprodução institucional, uma vez que o concurso
público, embora formalmente baseado no mérito, favorece o conteudismo. O alto
custo da preparação, que envolve cursos especializados, materiais caros e anos
de dedicação sem garantia de retorno imediato, limita o acesso de pessoas de
baixa renda, restringindo a diversidade na carreira, tudo isso em um Poder cujos
membros são muito bem remunerados.
Por essas razões, é que as declarações da Ajuris só reforçam
a necessidade de mudança estrutural no Judiciário, inclusive no Rio Grande do
Sul, embora essa mudança, visivelmente, não seja a intenção do atual Presidente
da associação.
A nota pública tenta desqualificar a atuação legítima da
imprensa e críticas feitas ao Poder Judiciário gaúcho, sugerindo que opiniões de
jornalistas, cidadãos e professores que formam milhares de juízes, membros do
MP, defensores, advogados públicos e servidores da justiça sejam responsáveis por
uma suposta campanha de ataque sistemático ao Poder Judiciário, ignorando o
fato de que inúmeras reportagens sobre supersalários não são uma invenção, mas uma
realidade fática e histórica.
Na realidade, a nota pública falha ao tentar desviar o foco
da discussão sobre contracheques milionários de magistrados no país, amplamente divulgados
pela imprensa nacional e internacional. Aliás, a criação do CNJ, inclusive do
CNMP, só foi possível após forte pressão interna e internacional, na esteira de
escândalos de corrupção no TRT-SP.
Quando a Ajuris sugere uma fantasiosa campanha de ataque
sistemático ao Poder Judiciário, esquece de que, em uma democracia, é preciso
compatibilizar a necessária independência das instituições do sistema de
justiça com a exigência de accountability e ao que determina a lei.
Em uma democracia, autonomia não significa um valor absoluto, e todos, sem exceção, devem estar submetidos a mecanismos de controle, não apenas integrantes dos poderes Executivo e Legislativo, os políticos profissionais, mas também os ramos jurídicos da burocracia do Estado.
Ponto alarmante da nota pública é a total ausência de
autocrítica e espírito republicano, cuja postura é perigosa porque pode ser
interpretada como manifesto à defesa do assédio judicial, da censura e do
enfraquecimento do papel fiscalizador da imprensa e da ciência produzida na
academia.
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