sábado, 24 de maio de 2025

NOTA PÚBLICA DA AJURIS É IMORAL


Nota pública é imoral, porque decisão judicial condenando jornalista no Rio Grande do Sul viola a liberdade de imprensa e informação e decisões vinculantes da Suprema Corte do país.

Rodrigo dos Reis, Geógrafo, Jornalista e acadêmico em Direito.

A sociedade brasileira ficou estarrecida com a decisão proferida pela juíza Karen Rick Bertoncello, condenando a jornalista Rosane de Oliveira e o jornal Zero Hora ao pagamento de 600 mil a título indenizatório, montante a ser corrigido com juros de mora de 1% ao mês desde a data de publicação da reportagem.

O jornal divulgou um ranking contendo o salário dos juízes do Estado, em que a desembargadora Iris Medeiros Nogueira figurava no topo, resultado do somatório do subsídio mensal e de valores decorrentes de indenização de licença-prêmio.

Suposta repercussão negativa sobre a honestidade da magistrada desencadeou a ação judicial, mas o processo é apenas a ponta do iceberg de uma “nobreza togada”, conceito de Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, que, aparentemente, vive de costas para a realidade social de um país marcado pela miséria, fome e desemprego.

Não se trata apenas de uma sentença proferida por uma juíza de primeiro grau, passível de recurso, mas sim de decisão judicial que viola a Constituição e afronta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente, a tese fixada no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6792 e n. 7055, com efeito vinculante, em que ficou consignado que meros juízos de valor, opiniões ou críticas feitas por jornalistas, no exercício da função, não podem ser motivos à responsabilização civil.

Verdade é que a sentença da magistrada refoge à razoabilidade e à proporcionalidade, escancara o corporativismo predatório de alguns juízes que se comportam mais como “CEOs” da administração pública, com narrativas que não se sustentam na correta subsunção à lei, mas no objetivo único de intimidar a imprensa e jornalistas.

A Constituição e as Leis do país são claras ao darem enorme importância à liberdade de expressão, consagrando seu vínculo com a garantia de acesso à informação, que é atributo fundamental da liberdade de imprensa e indispensável para oxigenar a democracia.

Há, ainda, normas internacionais ratificadas pelo Brasil, com destaque para o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto de San José da Costa Rica, conhecido também como Convenção Americana sobre Direitos Humanos, considerado o mais robusto tratado internacional sobre liberdade de expressão no mundo, com status de sobredireito no país.

E por qual motivo a justiça gaúcha ignorou a legislação e precedentes vigentes no ordenamento jurídico brasileiro?

A Lei Orgânica da Magistratura classifica os Tribunais e os Magistrados como órgãos do Poder Judiciário. Os juízes têm a função de aplicar a lei na circunscrição jurisdicionada. Já aos Tribunais cabe a tarefa privativa de eleger presidente e diretores, organizar serviços auxiliares, fixar vencimentos, conceder indenizações, licença e férias, etc.

Em uma instituição rigidamente hierárquica, uma juíza de primeiro grau, por mais autonomia que possua no exercício da jurisdição, pode julgar uma causa particular envolvendo a ex-presidente do Tribunal de Justiça?

A limitação dos chamados “supersalários” da magistratura tem sido um tema recorrente na imprensa e no mundo político, tanto é assim que o CNJ limitou o pagamento de penduricalhos, classificados como verbas indenizatórias concedidas a membros do Judiciário por meio de decisões administrativas dos tribunais.

O tema está tomando conta do país, isso porque subsídios de juízes, turbinados com indenizações, contrastam com a desigualdade social, a fome, o desemprego e a miséria que acometem milhões de brasileiros. Recentemente, inclusive, um ministro do STF chamou de “criatividade administrativa” os aumentos das remunerações dos juízes e classificou como um verdadeiro “constrangimento” para o poder judiciário.

Contudo, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS) emitiu uma nota pública na qual manifesta sua grande preocupação com o aumento de ataques à independência judicial dos juízes e juízas gaúchos e brasileiros e com críticas que, supostamente, ultrapassam o direito de manifestação, atingindo decisões judiciais de forma desrespeitosa.

Críticas de jornalistas, cidadãos, políticos, intelectuais, operadores do direito, ministros da Suprema Corte e professores de renomadas universidades do país, como USP e FGV,  a respeito de supersalários de agentes públicos, representam um ataque à independência do Poder Judiciário?

O “chilique” da Ajuris só comprova que as carreiras jurídicas são avessas a mudanças e críticas, sobretudo quando se trata de remuneração. Reformas no Judiciário são mais do que necessárias, pois o órgão sofre com a falta de uma lei atualizada que estabeleça em todo o país diretrizes modernas para sua governança e gestão, sintonizadas com o século 21.

Segundo a produção acadêmica do cientista político Rafael Rodrigues Viegas, a Lei Orgânica da Magistratura é antiga e inadequada (1979), enquanto integrantes da instituição estão discutindo e utilizando inteligência artificial, as disposições legais que discorrem sobre a estruturação do Poder Judiciário permanecem desatualizadas, ainda que o tema mereça especial atenção da classe política do país.

Por isso que a Ajuris, por mais legítima que seja sua autuação na defesa dos interesses corporativos de uma elite organizacional, deveria se preocupar em melhorar a prestação da justiça no Estado e em melhorar as condições de trabalho de magistrados.

Aliás, eventuais mudanças poderiam considerar a adoção de critérios legais que valorizem a certificação e a especialização dos juízes e desembargadores, critérios estes que precisam ser considerados no processo de vitaliciamento e de movimentação da carreira, no intuito de que “membros” qualificados e comprometidos permaneçam na carreira e ocupem postos estratégicos, gerando expectativa não apenas de elevar a qualidade das decisões judiciais, mas também reduzir a rotatividade e o preenchimento de posições por eventual influência política ou conveniência pessoal, tornando o Poder Judiciário mais republicano, eficiente, transparente e conectado à realidade social do país.

Hoje, a avaliação de desempenho na carreira é predominantemente quantitativa, seguindo diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, que prioriza o número de manifestações em geral em detrimento da qualidade e do impacto social das decisões judiciais, gerando um ambiente em que juízes e servidores são pressionados a produzir estatísticas positivas, em vez de análises aprofundadas e justas dos casos.

Como resultado desse modelo, a preocupação com metas numéricas leva a problemas de saúde física e mental, resultando no adoecimento de membros e servidores, em injustiças e em decisões automatizadas, que seguem modelos e padrões salvos em documentos de computador, que não necessariamente se amoldam melhor ao caso concreto. Gera-se o risco de ignorar a complexidade dos casos concretos, a coerência jurídica das manifestações, reforçando um modelo que privilegia a produtividade em detrimento da qualidade.

Nas carreiras do Judiciário, a avaliação deveria incluir critérios na lei mais qualitativos, considerando, por exemplo, a qualidade da fundamentação das manifestações, a defesa de direitos fundamentais e o impacto na pacificação dos conflitos sociais. Também seria importante incluir a percepção do cidadão, de advogados e outras autoridades e órgãos públicos, garantindo que o exercício da magistratura não esteja atendendo somente a números e a interesses outros, mas efetivamente cumprindo sua função determinada pela Constituição Federal.

Reformas no CNJ, em Corregedorias, a inclusão de mecanismos como feedback institucional, ouvidorias externas e participação da sociedade civil poderiam tornar a avaliação mais justa e alinhada aos interesses da população. Dessa forma, pode ser possível criar incentivos para que juízes e desembargadores se preocupem menos com a quantidade de manifestações, penduricalhos, privilégios e mais com a qualidade e a efetividade de suas ações.

De acordo com especialista, o Judiciário brasileiro sofre, ainda, com outro problema, que agrava todos os demais, e que não depende apenas de mudança na legislação, que é a persistência de um perfil elitizado na carreira, com pouca ou nenhuma formação em gestão pública e políticas públicas, que afasta a Instituição da realidade de estados e, principalmente, de municípios, estes muito desiguais entre si.

O processo de seleção à carreira só reforça esse perfil elitizado, em uma espécie de reprodução institucional, uma vez que o concurso público, embora formalmente baseado no mérito, favorece o conteudismo. O alto custo da preparação, que envolve cursos especializados, materiais caros e anos de dedicação sem garantia de retorno imediato, limita o acesso de pessoas de baixa renda, restringindo a diversidade na carreira, tudo isso em um Poder cujos membros são muito bem remunerados.

Por essas razões, é que as declarações da Ajuris só reforçam a necessidade de mudança estrutural no Judiciário, inclusive no Rio Grande do Sul, embora essa mudança, visivelmente, não seja a intenção do atual Presidente da associação.

A nota pública tenta desqualificar a atuação legítima da imprensa e críticas feitas ao Poder Judiciário gaúcho, sugerindo que opiniões de jornalistas, cidadãos e professores que formam milhares de juízes, membros do MP, defensores, advogados públicos e servidores da justiça sejam responsáveis por uma suposta campanha de ataque sistemático ao Poder Judiciário, ignorando o fato de que inúmeras reportagens sobre supersalários não são uma invenção, mas uma realidade fática e histórica.

Na realidade, a nota pública falha ao tentar desviar o foco da discussão sobre contracheques milionários de magistrados no país, amplamente divulgados pela imprensa nacional e internacional. Aliás, a criação do CNJ, inclusive do CNMP, só foi possível após forte pressão interna e internacional, na esteira de escândalos de corrupção no TRT-SP.

Quando a Ajuris sugere uma fantasiosa campanha de ataque sistemático ao Poder Judiciário, esquece de que, em uma democracia, é preciso compatibilizar a necessária independência das instituições do sistema de justiça com a exigência de accountability e ao que determina a lei.

Em uma democracia, autonomia não significa um valor absoluto, e todos, sem exceção, devem estar submetidos a mecanismos de controle, não apenas integrantes dos poderes Executivo e Legislativo, os políticos profissionais, mas também os ramos jurídicos da burocracia do Estado.

Ponto alarmante da nota pública é a total ausência de autocrítica e espírito republicano, cuja postura é perigosa porque pode ser interpretada como manifesto à defesa do assédio judicial, da censura e do enfraquecimento do papel fiscalizador da imprensa e da ciência produzida na academia.

Nenhum comentário: