domingo, 10 de agosto de 2025

Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e o lobby do setor imobiliário

Estudo de sociólogo da UFRGS mapeia conexões entre empresários, organizações e políticos, escancarando a quem realmente serve a revisão do PDDUA apresentada pela Prefeitura.

Nos últimos 70 anos, o Brasil passou por um forte processo de urbanização, resultado da explosão demográfica, do processo de industrialização e de um expressivo êxodo rural, que culminou na formação das principais cidades do país.

Porto Alegre é um exemplo. A capital do Rio Grande do Sul não ficou imune a esse processo, passando por significativas transformações territoriais nas últimas décadas, potencializadas pelo modelo de política urbana adotada e pelas sucessivas e casuísticas mudanças nas diretrizes de uso e ocupação do solo.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental reflete esse panorama. O PDDUA sofreu várias modificações, sendo a mais significativa a incorporação da zona rural à zona urbana, por meio da Lei Complementar n. 434 de 1999, alterada pela Lei n. 646 de 2010, que privilegiou a elite do setor imobiliário.

A atual revisão expõe a existência dessa relação histórica entre poder político e especulação imobiliária na cidade. Quando governava, Nelson Marchezan Júnior afirmou que não seria ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que fariam as reformas necessárias na cidade e que delegar isso ao "seu João e à Dona Maria seria irresponsabilidade”. A afirmação é apenas um sintoma estrutural de que o espaço urbano é visto como mercadoria: mora bem quem pode pagar!

Um recente estudo elaborado pelo sociólogo Marcelo Kunrath Silva (UFRGS) revelou “íntimas e intensas relações” entre pessoas e empresas com políticos que representam seus interesses nos Poderes Executivo e Legislativo. Trata-se de uma rede entre agentes (pessoas, empresas e organizações) que elegem representantes no parlamento, alteram legislações, instituem políticas públicas, controlam processos decisórios e fazem negócios que geram significativos impactos na cidade.

O pesquisador identificou agentes políticos centrais na rede de relação produzida na pesquisa. Dos 35 vínculos, em primeiro lugar está o atual prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo. Os vínculos identificados são recursos recebidos na campanha eleitoral de 2020, quando a candidatura recebe apoio de atores centrais da rede: as famílias Gerdau, Ling, Goldsztein, Hertz e Melnick aparecem entre as principais responsáveis pelas doações recebidas, segundo o site do TSE (2020).

A pesquisa destacou que Melo não foi a opção preferencial dos integrantes da rede na eleição municipal de 2016, quando houve um forte investimento financeiro e político na campanha de Marchezan, que acabou eleito. Por outro lado, a partir dos dados do TSE, observa-se que parte importante dos financiadores de Marchezan (2016) direcionaram recursos à candidatura de Melo (2020), que teve Ricardo Gomes como vice, identificado na rede como operador e articulador entre o empresariado e a política local, especialmente do setor imobiliário.

Diagrama

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Outro agente político que aparece na rede como o segundo indivíduo com o maior número de vínculos (30) é Felipe Camozzato. O deputado estadual apresenta relações estreitas com o deputado federal Marcel Van Hattem, ambos do mesmo partido e com uma trajetória política parecida.

No mapeamento, também foram identificados os vereadores Fernanda Barth, Mariana Pimentel, Ramiro Rosário, Tiago Albrecht e Jessé Sangalli de Mello, que igualmente receberam apoio financeiro e político nas eleições (2020) de setores do empresariado com centralidade na rede.

Mais um agente político chave aparece no sociograma do estudo. É o Secretário Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade. Germano Bremm comanda a pasta responsável pela revisão do Plano Diretor e promoveu alterações que beneficiam o setor imobiliário, como o licenciamento digital, o licenciamento expresso e o habite-se autodeclaratório.

Na sua gestão, restou evidente o desmonte em estruturas de participação, a exemplo dos GTs de coordenação técnica, coordenação regional e grupos temáticos. Entretanto, a controvérsia não para por aí, já que a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre tornou-se alvo de uma enxurrada de ações na Justiça e no Tribunal de Contas do Estado.

O TCE suspendeu as atividades do Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano e Ambiental porque detectou irregularidades na eleição dos conselheiros, destacando o impacto das decisões do órgão colegiado na gestão da cidade. A Justiça também já foi acionada para garantir eleições legítimas e acesso público a reuniões, uma vez que o CMDUA estava operando com composição irregular desde 2020.

O Ministério Público, por meio do Centro de Apoio Operacional da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias, veio a púbico esta semana e apontou uma série de irregularidades. O MP enfatizou a ausência de medidas concretas voltadas à vulnerabilidade climática da cidade, como o mapeamento de áreas de risco e a previsão de ações de drenagem urbana, criticando o foco na verticalização e flexibilização de parâmetros urbanísticos voltados ao mercado imobiliário de alto padrão, sem contrapartidas para habitação de interesse social ou adensamento populacional. O órgão ainda apontou falhas na regulamentação de áreas verdes e na incorporação de soluções baseadas na natureza.

Não bastassem as inúmeras controvérsias que atravessam a revisão do PDDUA, ontem (09/08), marcada por mais liminares da justiça federal, foi realizada uma audiência pública lotada de CCs e representantes do setor imobiliário, em que se limitou a entrada do público após às 11 horas, tornando o ato só mais um rito formal para validar o que já estava decidido nos gabinetes, bem longe da população, que só parece importar de dois em dois anos.

É constrangedor ter que reportar o óbvio: João e Maria importam. A participação popular não é exceção, mas direito e dever. O Plano Diretor deve ser um instrumento de gestão democrática da cidade, atendendo às necessidades da população, como expressamente determinam a Lei e a Constituição, e não servir a interesses particulares.

Nenhum comentário: