domingo, 10 de agosto de 2025

Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e o lobby do setor imobiliário

Estudo de sociólogo da UFRGS mapeia conexões entre empresários, organizações e políticos, escancarando a quem realmente serve a revisão do PDDUA apresentada pela Prefeitura.

Nos últimos 70 anos, o Brasil passou por um forte processo de urbanização, resultado da explosão demográfica, do processo de industrialização e de um expressivo êxodo rural, que culminou na formação das principais cidades do país.

Porto Alegre é um exemplo. A capital do Rio Grande do Sul não ficou imune a esse processo, passando por significativas transformações territoriais nas últimas décadas, potencializadas pelo modelo de política urbana adotada e pelas sucessivas e casuísticas mudanças nas diretrizes de uso e ocupação do solo.

O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental reflete esse panorama. O PDDUA sofreu várias modificações, sendo a mais significativa a incorporação da zona rural à zona urbana, por meio da Lei Complementar n. 434 de 1999, alterada pela Lei n. 646 de 2010, que privilegiou a elite do setor imobiliário.

A atual revisão expõe a existência dessa relação histórica entre poder político e especulação imobiliária na cidade. Quando governava, Nelson Marchezan Júnior afirmou que não seria ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que fariam as reformas necessárias na cidade e que delegar isso ao "seu João e à Dona Maria seria irresponsabilidade”. A afirmação é apenas um sintoma estrutural de que o espaço urbano é visto como mercadoria: mora bem quem pode pagar!

Um recente estudo elaborado pelo sociólogo Marcelo Kunrath Silva (UFRGS) revelou “íntimas e intensas relações” entre pessoas e empresas com políticos que representam seus interesses nos Poderes Executivo e Legislativo. Trata-se de uma rede entre agentes (pessoas, empresas e organizações) que elegem representantes no parlamento, alteram legislações, instituem políticas públicas, controlam processos decisórios e fazem negócios que geram significativos impactos na cidade.

O pesquisador identificou agentes políticos centrais na rede de relação produzida na pesquisa. Dos 35 vínculos, em primeiro lugar está o atual prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo. Os vínculos identificados são recursos recebidos na campanha eleitoral de 2020, quando a candidatura recebe apoio de atores centrais da rede: as famílias Gerdau, Ling, Goldsztein, Hertz e Melnick aparecem entre as principais responsáveis pelas doações recebidas, segundo o site do TSE (2020).

A pesquisa destacou que Melo não foi a opção preferencial dos integrantes da rede na eleição municipal de 2016, quando houve um forte investimento financeiro e político na campanha de Marchezan, que acabou eleito. Por outro lado, a partir dos dados do TSE, observa-se que parte importante dos financiadores de Marchezan (2016) direcionaram recursos à candidatura de Melo (2020), que teve Ricardo Gomes como vice, identificado na rede como operador e articulador entre o empresariado e a política local, especialmente do setor imobiliário.

Diagrama

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Outro agente político que aparece na rede como o segundo indivíduo com o maior número de vínculos (30) é Felipe Camozzato. O deputado estadual apresenta relações estreitas com o deputado federal Marcel Van Hattem, ambos do mesmo partido e com uma trajetória política parecida.

No mapeamento, também foram identificados os vereadores Fernanda Barth, Mariana Pimentel, Ramiro Rosário, Tiago Albrecht e Jessé Sangalli de Mello, que igualmente receberam apoio financeiro e político nas eleições (2020) de setores do empresariado com centralidade na rede.

Mais um agente político chave aparece no sociograma do estudo. É o Secretário Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade. Germano Bremm comanda a pasta responsável pela revisão do Plano Diretor e promoveu alterações que beneficiam o setor imobiliário, como o licenciamento digital, o licenciamento expresso e o habite-se autodeclaratório.

Na sua gestão, restou evidente o desmonte em estruturas de participação, a exemplo dos GTs de coordenação técnica, coordenação regional e grupos temáticos. Entretanto, a controvérsia não para por aí, já que a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre tornou-se alvo de uma enxurrada de ações na Justiça e no Tribunal de Contas do Estado.

O TCE suspendeu as atividades do Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano e Ambiental porque detectou irregularidades na eleição dos conselheiros, destacando o impacto das decisões do órgão colegiado na gestão da cidade. A Justiça também já foi acionada para garantir eleições legítimas e acesso público a reuniões, uma vez que o CMDUA estava operando com composição irregular desde 2020.

O Ministério Público, por meio do Centro de Apoio Operacional da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias, veio a púbico esta semana e apontou uma série de irregularidades. O MP enfatizou a ausência de medidas concretas voltadas à vulnerabilidade climática da cidade, como o mapeamento de áreas de risco e a previsão de ações de drenagem urbana, criticando o foco na verticalização e flexibilização de parâmetros urbanísticos voltados ao mercado imobiliário de alto padrão, sem contrapartidas para habitação de interesse social ou adensamento populacional. O órgão ainda apontou falhas na regulamentação de áreas verdes e na incorporação de soluções baseadas na natureza.

Não bastassem as inúmeras controvérsias que atravessam a revisão do PDDUA, ontem (09/08), marcada por mais liminares da justiça federal, foi realizada uma audiência pública lotada de CCs e representantes do setor imobiliário, em que se limitou a entrada do público após às 11 horas, tornando o ato só mais um rito formal para validar o que já estava decidido nos gabinetes, bem longe da população, que só parece importar de dois em dois anos.

É constrangedor ter que reportar o óbvio: João e Maria importam. A participação popular não é exceção, mas direito e dever. O Plano Diretor deve ser um instrumento de gestão democrática da cidade, atendendo às necessidades da população, como expressamente determinam a Lei e a Constituição, e não servir a interesses particulares.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

A SALA VIP DOS MINISTROS DO TST

O país tem produzido uma elite no sistema de justiça que vive de costas para a realidade social do país.

Ninguém tem dúvida de que a autonomia do Poder Judiciário é fundamental ao aperfeiçoamento de qualquer Democracia, isso desde Montesquieu, mas ser um dos sistemas de justiça mais caros e desiguais do planeta não é razoável.

Explodem escândalos de supersalários, mordomias, privilégios e até crimes cometidos por magistrados no Brasil, mas parece que o Congresso Nacional está mais preocupado em atacar ministros da Suprema Corte do que solucionar problemas estruturais do sistema de justiça.

O CNJ foi criado na esteira de escândalos de corrupção na justiça do trabalho de São Paulo. O privilégio de uma sala VIP exclusiva para ministros do TST, custeada com recursos públicos, é só um sintoma claro da desigualdade e distorção sistemática e permanente no uso do dinheiro público.

Não se trata de garantir segurança e melhores condições de trabalho a juízes, mas da manutenção de mordomias à uma casta que vive há séculos de costas para a realidade social da Nação. Uma casta regada a muitos privilégios incompatíveis com a função pública e moralidade administrativa, sobretudo, em um país cuja sociedade é marcada pela fome, desemprego e desigualdade. Em nenhuma Nação do mundo juízes possuem tantas regalias como no Brasil.

Os salários e benefícios, não raro contracheques milionários, desses cargos já permitem acesso, com recursos próprios, a qualquer sala “especial” de aeroportos do país. Portanto, trata-se de mais um gasto supérfluo, que só reforça a imagem de uma elite no serviço público que insiste em viver desconectada da realidade da maioria da população, minando a confiança e a credibilidade na Justiça.

Segundo o cientista político Rafael Rodrigues Viegas (FGV), a construção de uma sala VIP para ministros do Tribunal Superior do Trabalho, a um custo de R$ 1,5 milhão, ilustra o que ele chama de uma categoria de CEOs da administração pública: elites estatais com muita autonomia e muitos recursos, com pouca transparência e quase nenhuma responsabilização ou fiscalização pelos órgãos de controle, que possuem déficit de accountability, cujos gastos só reforçam a distância entre altos cargos do Judiciário e a realidade da população.

De acordo com o especialista, essas elites prejudicam a imagem do serviço público e corroem a confiança na Justiça, já que operam por meio de um modus operandi que visa à reprodução de privilégios infinitos, esgotando os recursos do Estado e ignorando as inúmeras desigualdades do país.

Em verdade, há séculos o Estado brasileiro está sendo capturado por elites estatais insaciáveis, que aprofundam o descrédito institucional e o fosso entre governantes e governados, entre Estados e Municípios, numa promiscuidade entre coisa pública e privada, privando uma sociedade inteira de seus direitos mais fundamentais, como saúde, educação, segurança e assistência social.

domingo, 3 de agosto de 2025

A DEMOCRACIA COLOCOU O BOLSONARISMO NO BANCO DOS RÉUS

Ausência de uma justiça de transição pós-ditadura explica ataques à democracia, à soberania nacional e o protagonismo político de militares no Brasil.

Desde a ditadura militar de 1964 que a sociedade brasileira não vive um ataque sistemático orquestrado contra a Constituição e a Democracia. O bolsonarismo despertou o que há de pior na política nacional. 

Ódio à Constituição, desligitimação das instituições, ataques a jornalistas, pedidos de intervenção militar, culto a torturadores, tentativa de ruptura da ordem política e social e até invocação de um novo AI-5 foram e ainda são algumas das pautas mais bizarras defendidas por bolsonaristas ávidos pelos anos de chumbo.

Jair Messias Bolsonaro foi o único presidente pós-redemocratização não reeleito. Perdeu a eleição porque, enquanto a fome e o desemprego aumentavam, preferiu atacar a imprensa, o sistema eleitoral, o Poder Judiciário e debochou da morte de milhares de pessoas durante a pandemia.

Ainda que as eleições contassem com as mesmas urnas que o elegeram em 2018, o ex-presidente não aceitou a derrota e arquitetou um golpe para permanecer no poder, prevendo, entre outras medidas, a implantação de um Estado de exceção e a execução do Presidente da República e Vice-Presidente eleitos e de um ministro da Suprema Corte.

Tanto não bastasse, como tudo em política pode ser transformado em narrativa, a meta do bolsonarismo agora é transformar a tentativa de golpe de Estado em uma fantasiosa perseguição política, nem que isso custe muito caro à soberania nacional e aos interesses do agronegócio e da indústria.

Exemplo são as retaliações dos EUA e as constantes manifestações contra supostos “abusos” do Supremo Tribunal Federal, em especial, do ministro Alexandre de Moraes. Curioso é que a solução apresentada pelos radicais é articular mais represálias e eleger o número mínimo de Senadores para propor o impeachment de ministros da Suprema Corte considerados inimigos.

O CNJ é formado majoritariamente por integrantes da carreira e presidido pelo Presidente do STF, o Poder Judiciário brasileiro é um dos mais caros do planeta e explodem escândalos de corrupção e supersalários em diversos tribunais, mas isso tudo parece não importar aos bolsonaristas, que nunca propuseram um projeto de lei para reformar o sistema de justiça do país e torná-lo mais eficiente.

Ninguém tem dúvida de que objetivo do núcleo duro do bolsonarismo, mais precisamente de sua elite dirigente, apoiado por alguns Deputados e Senadores da extrema direita, é o de livrar os principais personagens da trama golpista da cadeia, frustrando a aplicação da lei, já que tudo deveria terminar em pizza na política brasileira.

Essa simbiose entre política, autoproteção e autoritarismo corrói a Democracia. Quando parlamentares abandonam sua função de legislar a favor do desenvolvimento nacional e dos interesses da Nação, traem a pátria e promovem a desfiguração das funções constitucionais do Poder Legislativo.

Já dizia o dramaturgo e poeta Bertolt Brecht: que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio? Não há Democracia sem o sufrágio livre e universal. Também não há Democracia onde juízes são atacados por aplicar a lei. Ao agirem como inimigos da Constituição, políticos traem seu papel constitucional e ameaçam a própria Democracia. Faz falta uma justiça de transição no Brasil, talvez assim militares não tivessem espaço e protagonismo político.

sábado, 5 de julho de 2025

Eleição Direta do PT em Porto Alegre

Com sete chapas inscritas, PED aponta para possível segundo turno entre CNB e AVANTE na capital do Rio Grande do Sul.

O Processo de Eleição Direta (PED) é um importante instrumento de democracia interna do Partido dos Trabalhadores, por meio do qual filiados vão às urnas votar para renovar as instâncias partidárias a nível municipal, regional, estadual e nacional.

Esse processo tem como objetivo não apenas eleger presidentes, executivas, diretórios e promover a composição das chapas na disputa, mas também aprofundar a democracia e os debates em prol de um partido mais plural, representativo dos mais variados segmentos da sociedade.

Em Porto Alegre, capital dos gaúchos, com 07 chapas inscritas na disputa interna, o cenário político aponta para um possível quadro de segundo turno entre CNB e Avante.

A tendência majoritária Construindo um Novo Brasil (CNB) deve conquistar diretórios estaduais em 18 unidades da Federação nesse domingo (06/07). O Rio Grande do Sul é um dos estados que deve ficar de fora da hegemonia da tendência, cujo cenário aponta para possível vitória no primeiro turno e manutenção do atual grupo político que preside o partido, onde a maior liderança política é o deputado federal Paulo Pimenta. Militantes experientes, contudo, são cautelosos e não descartam eventual reviravolta.

Já a conjuntura em Porto Alegre é outra bem diferente. A Socialismo em Construção também preside o PT municipal e apoia Helenir Schurer. A sindicalista disputa o comando do partido na capital pela CNB, que, embora seja corrente minoritária no Estado, tem o apoio da força política mais expressiva no PT gaúcho.

Porém, um entrave à vitória da sindicalista é, justamente, o movimento político liderado por Maria do Rosário, segunda deputada federal do PT mais votada no Estado e candidata à prefeita na última eleição. A Avante possui dois vereadores, um deputado estadual e inúmeras lideranças, todos com base em Porto Alegre, exercendo forte influência política na disputa municipal, com potencial de levar a eleição ao segundo turno, quando deve receber apoio de outros grupos políticos.

Inobstante as críticas que surgiram após o desempenho na eleição municipal em 2024, análise de conteúdo realizada com auxílio do software francês Iramuteq, a partir de questionário aplicado aos apoiadores de Maria do Rosário, revela que a base social do movimento político liderado pela deputada se mantém coesa, estável e mobilizada.

                                    

A análise de dados revelou padrões importantes nas respostas dos apoiadores. A nuvem de palavras destacou termos como "política", "formação", "PT", "movimento", "comunicação", “debate”, “novo”, “pessoa”, “Brasil, “direito”, “grupo”, “coletivo”, “socialismo”, “espaço”, “mulher”, etc. O dendograma classificou as respostas em seis classes distintas, enquanto o plano cartesiano mostrou associações entre palavras relacionadas à "formação". Por sua vez, a análise de similitude verificou as conexões entre conceitos, com clusters centrais em torno de "formação", "política", "debate", "PT", "Maria do Rosário", "movimento", “pessoa” e “social”.

Com efeito, os resultados indicam que a maioria dos apoiadores acredita que o movimento político liderado pela deputada é o único capaz de reorganizar e promover, dentro do partido, um amplo debate sobre formação política e mobilização sintonizadas com a nova realidade social e digital.

Fundada em outubro de 2015, em uma conjuntura na qual o impeachment da Presidente Dilma Rousseff estava em curso no Brasil, a Avante nasceu comprometida com a construção do partido e sua afirmação estratégica com a luta socialista e dos movimentos sociais.

O movimento político tem Maria do Rosário e Fátima Bezerra no Rio Grande do Norte como suas principais lideranças nacionais. A deputada federal foi a primeira parlamentar a enfrentar o fascismo que ganhava forma com a ascensão do bolsonarismo no país. Por sua vez, Fátima Bezerra foi deputada estadual, federal, senadora é a atual governadora do Estado potiguar.

É nesse contexto que o movimento político, com a candidatura do sociólogo Rodrigo Campos Dilelio, pode empurrar a disputa eleitoral em Porto Alegre para o segundo turno, quando CNB, apoiada por Socialismo em Construção, deve enfrentar a união de outros grupos políticos internos. A ala dominante do PT ainda deve sofrer derrotas em Mato Grosso do Sul, Tocantins, Bahia, Rio Grande do Norte, Amazonas e Amapá. Em Mato Grosso e Alagoas o cenário também é bastante incerto.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

VIOLÊNCIA EXTREMA NO BRASIL

 

O país precisa discutir com seriedade o tema da violência extrema, nos três níveis da federação, a fim de que políticas públicas sejam efetivadas visando à desradicalização e o combate aos crimes de ódio na internet.

Rodrigo dos Reis, Geógrafo, Jornalista e acadêmico em Direito.

O ambiente digital, embora tenha revolucionado a comunicação, tornou-se um vetor potente à propagação de discursos de ódio, radicalização e violência extrema, especialmente entre os jovens, em uma verdadeira crise multifacetada, que atinge grupos vulneráveis de forma desproporcional, a exigir soluções e respostas institucionais eficazes por parte do poder público, nos três níveis da federação.

Crianças e adolescentes têm sido alvos frequentes de aliciamentos e estímulos a comportamentos extremos, que se manifestam por meio do cyberbullying, disseminação do ódio e incitação à automutilação e ao suicídio. O ambiente escolar, espaço que deveria ser de proteção e aprendizado, também tem sido invadido por essas dinâmicas violentas, cujas redes sociais se tornaram catalisadoras de todas as formas de violência.

Plataformas como o TikTok e o Instagram são instrumentalizadas para disseminar discursos misóginos, antissemitas, LGBTfóbicos e racistas. Estudos, nesse sentido, evidenciam que algoritmos atuam como aceleradores da radicalização: após interações mínimas com conteúdos motivacionais, usuários passam a receber fluxos de conteúdos de ódio, em que mulheres, judeus, negros e LGBT são os principais alvos.

A série britânica “Adolescência” mostrou como os jovens estão interagindo na internet de maneira codificada, muitas vezes sem supervisão e com acesso a conteúdos que moldam percepções misóginas e autoritárias. Soma-se a isso a existência de fóruns “incel” (involuntariamente celibatários), espaços em que se reproduzem e reforçam ideias violentas sobre o papel das mulheres na sociedade, frequentemente resultando em ataques misóginos explícitos.

Dados recentes revelam um crescimento preocupante de conteúdos que promovem o desprezo, a inferiorização e a violência contra mulheres, disseminados por meio de algoritmos que favorecem a radicalização de ideias, sobretudo entre os jovens.

Pesquisa conduzida pela University College London e a Universidade de Kent confirma que os algoritmos do TikTok estão normalizando discursos de ódio contra mulheres entre os adolescentes. Basta que um jovem assista a alguns vídeos com conteúdo misógino para que seu feed seja inundado com conteúdos semelhantes, num processo que retroalimenta a violência.

Nos Estados Unidos, mais de 40 procuradores-gerais estaduais estão investigando a rede social TokTok por danos à saúde mental dos adolescentes, o que demonstra uma preocupação global para minimizar sequelas causadas pelo uso irregular das plataformas digitais entre os jovens.

Recentemente, o Brasil editou a Lei nº 15.100/2025, proibindo o uso de celulares nas escolas, destacando a relação entre a queda no desempenho escolar e a utilização de aparelhos celulares. Entretanto, sabe-se que a queda no desempenho escolar é somente a ponta do iceberg, pois o uso das redes sociais para ataques virtuais, cyberbullying, destruição da existência e reputação de pessoas em fase de desenvolvimento tornou-se uma realidade no país.

Exemplo disso é a prática do estupro virtualcujos alvos mais frequentes são meninas adolescentes. Diante desse contexto, é crucial que o Estado brasileiro discuta o tema com a devida preocupação, especialmente sobre como esses crimes ocorrem nas internet e quais medidas podem ser adotadas para evitá-los.

A vulnerabilidade, sobretudo de adolescentes, tem sido documentada por pesquisas que revelam que mulheres sofrem violências simbólicas e institucionais que se manifestam por meio de xingamentos, humilhações, exposição pública de suas imagens, práticas de silenciamento e hostilidade ao seu engajamento político e social. Muitas dessas violências têm origem em espaços escolares e se amplificam nas redes sociais, onde a cultura do ódio encontra terreno fértil.

Estatísticas da SaferNet revelam que o TikTok figura entre os 10 domínios mais denunciados por violência ou discriminação contra mulheres desde 2020, liderando denúncias em 2021 e 2022. O relatório aponta que discursos misóginos ganham ares de “verdades que ninguém de conta”, mascarando sua natureza violenta e contribuindo para a aceitação social do machismo e da misoginia.

Por sua vez, dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024 reforçam que o TikTok está entre as redes mais utilizadas por crianças e adolescentes brasileiros: 93% dos adolescentes entre 11 e 17 anos acessam a internet pelo celular e 69% afirmam usar o TikTok, sendo a rede social uma das principais fontes de informação, entretenimento e formação de identidade na juventude. Dentre os adolescentes que viram vídeos de ódio, 46% afirmaram ter assistido a conteúdos misóginos.

A proposta de CPI da Deputada Federal Maria do Rosário surge em meio a essa escalada vertiginosa dos crimes digitais envolvendo adolescentes no Brasil, especialmente mulheres, cujo requerimento recebeu apoio de partidos políticos de direita e foi protocolado com 176 assinaturas de parlamentares. No entanto, a proposta precisa ser colocada em votação pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).

O antissemitismo também é outra preocupação, uma vez que relatório da Confederação Israelita no Brasil aponta que denúncias de práticas antissemitas cresceram 350% entre 2022 e 2024. Para se ter ideia, só no ano passado, 73% de todas as denúncias ocorreram no ambiente digital. As redes sociais X (48%) e Instagram (37%) continuam sendo as principais plataformas dos casos de intolerância contra os judeus. São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul concentram cerca de 40% de todas as denúncias registradas no país, disposição territorial que vem se repetindo pelo menos desde 2023.

Mapa

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Muito embora dados atuais apontem para uma queda constante dos casos de antissemitismo registrados, não se pode ignorar o fato de que o Brasil é a segunda maior comunidade judaica da América Latina, onde São Paulo (1º), Rio de Janeiro (2º) e Porto Alegre (3º) são as capitais brasileiras com a maior concentração de judeus. Numa situação de guerra, que tem gerado grande repercussão social, a tendência é a potencialização dos extremismos, não raro culminando em atos de violência extrema.

Em média, o Brasil registrou em torno de 30 a 40 mil comentários e declarações sobre a guerra nas redes sociais, entre 2024 e 2025, segundo dados da Conib, cujo monitoramento é registrado em relatórios diários e busca compreender como o atual conflito entre Israel e o Hamas tem impactado o comportamento antissemita no cenário digital brasileiro, panorama que tende a se agravar com a escalada do conflito envolvendo Irã.

A violência contra a população negra é outra infeliz realidade no Brasil. De acordo com o Atlas da Violência de 2024, pessoas negras são a maioria das vítimas de homicídio. Os dados mostram que quarenta e seis mil, quatrocentas e nove pessoas negras (46.409) foram vítimas de homicídio só em 2022. É fato que a violência contra pessoas negras, no recorte da segurança pública, indica a existência de um padrão recorrente de tratamento diferenciado, fenômeno explicado pela teoria do labllabeling approach ou do etiquetamento social.

Os dados atualizados do Atlas da Violência 2025, referenciando taxas de homicídios de pessoas negras e não negras entre os anos de 2013 e 2023, apontam para um retrato da persistente desigualdade racial na violência letal no país. Ainda que os dados indiquem tendência à redução dos homicídios, essa dinâmica não se distribui de forma equânime entre os grupos de pessoas negras e não negras.

O problema da violência contra a população negra é estrutural. Evidência disso é o indicador Índice de Vulnerabilidade da Juventude Negra (IVJ-N) 2024, desenvolvido pela UNESCO e pelo FBSP, para medir a vulnerabilidade dos jovens brasileiros à violência. Mesmo considerando outras dimensões, para além do sistema de segurança pública e de justiça criminal, os dados mostram uma persistência sistêmica: esferas de políticas públicas, envolvendo direitos sociais, ainda não conseguem proteger a juventude negra no mesmo patamar que a juventude branca, o que indica um padrão de vulnerabilidade à violência suportado e dirigido aos jovens negros, que historicamente tem escapado do alcance da ação do Poder Público.

Relativamente à população LGBTQIAPN+, os dados de 2025 indicam um aumento persistente nos registros de casos de violência. Só de 2022 para 2023, os casos de violência contra homossexuais e bissexuais registrados no sistema de saúde aumentaram 35%, enquanto os casos de violência contra pessoas transsexuais e travestis aumentaram em 43%. Quando se analisa a série histórica de 2014 a 2023, o quadro é ainda mais assustador, sobretudo entre os jovens.

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Portanto, o fenômeno da violência é complexo e multifacetado, retrato de um país plural, que demanda respostas institucionais à altura de todos os entes federados. Em contextos nos quais as instituições falham em acolher, proteger e valorizar subjetividades, muitos adolescentes passam a buscar em grupos extremistas o espaço de escuta, identidade, pertencimento e reconhecimento, segundo o cientista político e economista Dominique Sopo, professor da Sorbonne e presidente da associação SOS Racismo na França.

A articulação do poder público e parcerias com universidades para produção de dados e capacitação de órgãos públicos, como CT, CRAS, CREAS, CAPS, Profissionais da Saúde e Sistema de Segurança Pública, a fim de que estejam preparados para o enfrentamento da violência extrema, são fundamentais e necessárias. Só assim se dará concretude às disposições da Lei nº 14.643/2023 e às finalidades do Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE), instituído pelo Decreto nº 12.006/2024.